O Milagre
Existe uma grande diferença entre devoção e alienação, porém é correto afirmar que, uma pode levar à outra em um ambiente favorável à manipulação. E isso se dá por vários fatores, seja por ignorância, uma pré disposição a se deixar levar com facilidade, ou a insaciável vontade de pertencer à algo, de acreditar piamente que sua existência está diretamente relacionada a algo religioso, o que leva pessoas a cometerem atos absurdos.
E o longa em questão coloca frente à frente dois rivais históricos, ciência e religião. E apesar do título aludir à algo superior, a trama leva o espectador através de um caminho mais realista, causando questionamento, e expondo o que, ou quem, muitas vezes se esconde por trás de intervenções divinas ou fatos inexplicáveis, que em sua maioria são declarados como um milagre.
O ritmo narrativo mais lento induz o espectador a se atentar aos detalhes, seja na devoção cega por parte da família de Anna (Kíla Lord Cassidy), ou o ceticismo de Lib (Florence Pugh), constantemente à procura de respostas, e indignada com os atos que uma família é capaz diante de uma inocente garotinha.
A trilha sonora guia com perfeição o mistério que permeia constantemente a trama, sempre aludindo à algo surreal quando necessário, ou sugerindo emergência nos momentos chave da trama, sendo um dos pontos fortes do longa.
Florence Pugh tem um trabalho incrível e sutil, sua personagem transmite inúmeros sentimentos sem perder o controle, com nuances que revelam muito com pouco, seja o medo através de um olhar, ou a insatisfação e revolta através de uma respiração ofegante, que sugere que a personagem está prestes a perder o controle e explodir em um ataque de fúria.
A jovem atriz Kíla Lord Cassidy também convence, com seus gestos delicados e um tom doce nas palavras da personagem alude à santidade atribuída à mesma, levando o espectador a acreditar por alguns momentos em seu dom divino.
O longa também revela o quão perigosa pode ser a alienação religiosa, algo capaz de levar famílias a cometerem atos absurdos em nome de Deus, especificamente em uma sociedade retrograda e machista, onde uma criança abusada é induzida a se sentir culpada pela violência que sofreu, atribuindo a uma criança a responsabilidade que deveria ser dos pais, os protetores da indefesa garota.
E Pugh tem o papel fundamental de representar toda revolta e insatisfação do público, o que culmina em ato impensado devida tamanha revolta.
A trama se passa em 1862, e assusta não só pela história abordada, mas sim com algo que por vezes continua se repetindo ano após ano, incluindo os dias de hoje, alertando para os riscos da alienação e a falta de conhecimento, detalhes que podem levar até mesmo famílias a cometerem atrocidades contra os seus, sem sequer sentir o mínimo de remorso.
Crítica por: Filipe R. Bichoff
Título: O Milagre
Avaliação: ⭐️⭐️⭐️⭐️ / 8,0
Direção: Sebastián Lelio
Elenco: Florence Pugh, Niamh Algar, Tom Burke, Kíla Lord Cassidy, David Wilmot, Ruth Bradley
Duração: 1h 48m
Roteiro: Sebastián Lelio, Alice Birch
Fotografia: Ari Wegner
Trilha sonora: Matthew Herbert
Ano: 2022